1 de agosto de 2007

Efeitos ópticos da nossa miséria

novembro de 2006
Entrevista de Laura Greenhalgh a Jessé Souza

Não é a economia. Para cientista social, não é através dela que se vai explicar o Brasíl injusto e invisível

A cada relatório do Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento, o Pnud, tem-se a possibilidade de experimentar alguma emoção na gangorra das estatísticas. Divulgado na última quinta-feira, um novo relatório revela que a gangorra pendeu para baixo na classificação do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiro: caímos da 68ª para a 69ª posição. Se podemos nos ufanar (e não é o caso) de ter passado a Colômbia, que está em 70º lugar, continuamos acenando à distância para os vizinhos: Uruguai está na 43ª posição entre os países com melhor IDH. Chile na 38ª , Argentina na 36ª. Difícil alcançá-los no curto prazo.

Em compensação, o documento destacou os efeitos positivos do programa Bolsa Família na distribuição nacional de renda, uma investida tímida, mas mensurável, num persistente quadro de iniqüidades. Convidado a refletir sobre esses dados, o cientista social Jessé Souza, que há dez anos estuda a desigualdade brasileira, adverte: esperar que a “revolução pela educação”, como dizia o slogan de campanha de Cristovam Buarque, acabe com a exclusão no País é balela. Imaginar que a culpa de índices tão ruins é de governos, uma inutilidade. Acreditar que a pobreza será decifrada pela análise economicista, um erro.

À frente do Centro de Pesquisas sobre Desigualdade (Cepedes), da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), este potiguar de 46 anos faz um trabalho importante. Desenvolve estudos empíricos e teóricos sobre a reprodução de um modelo, ou talvez de uma engrenagem que mantém boa parte do Brasil à margem de si mesmo. No título de um livro recém-lançado -A Invisibilidade da Desigualdade Brasileira (UFMG, 2006) - Jessé já entrega o mote. Revela sua (in)compreensão de um País onde, em matéria de atraso social, razões são raízes. E das profundas.

Pelo PNUD, soubemos que o IDH brasileiro caiu. Em compensação, o relatório diz que o País melhorou a distribuição de renda. Como entender estes resultados? Isso tem a ver com o fato de que o Brasil melhorou a partir dos critérios do índice, que são em si criticáveis. É o Brasil em comparação com ele mesmo. Mas o Brasil piorou na comparação com outros países.

A metodologia de cálculo do IDH, que leva em conta basicamente três variáveis (educação, expectativa de vida e renda per capita) não tem sido eficaz?

É certamente mais eficaz do que índices anteriores, que apenas mediam a renda e outros agregados econômicos. Mas o IDH não mede e sequer atenta para fatores que condicionam a desigualdade em todas as suas dimensões. Esses fatores começam na socialização familiar. O que eu quero dizer é o seguinte: uma criança de quatro ou cinco anos, quando chega à escola, dependendo da estrutura familiar ou da ausência dela - por exemplo, presença ou ausência do pai, estímulo ou não à leitura, existência ou não de bases para a construção da auto-estima - ela já entra como perdedora ou vencedora.

Esse tipo de raciocínio não culpabiliza a família?

Não é esse o ponto. A escola não é o início do processo de competição social, como muitos pensam. Ao contrário. Encarada isoladamente, ela sanciona e legitima uma desigualdade formada muito antes dela! Não perceber essa dimensão equivale a não ver como a desigualdade é constituída no seu fundamento e sua base primeira. Mas Marx não recorreu à família para definir classe social. O conceito moderno de classe social não se restringe a renda ou a determinantes econômicos, como no feitio marxista clássico. O maior sociólogo contemporâneo para mim é o francês Pierre Bourdieu (morto em 2002) precisamente por haver mostrado, como nenhum outro, que a classe social se transmite por herança familiar através de “sinais invisíveis”. Sinais como o medo e a insegurança transmitida na tenra infância, dos pais para os filhos, em famílias pobres, contrapondo-se ao estímulo da coragem e iniciativa dos “bem nascidos”. São sinais invisíveis, assim como invisível é a desigualdade que a nossa percepção comum produz e reproduz continuamente. Desigualdade tornada invisível e “naturalizada”.

Como assim “naturalizada”?

Porque justamente esse fenômeno da naturalização é o que nos permite “legitimar” a desigualdade como se ela fosse culpa dos próprios excluídos.

Voltando ao IDH, existem outros fatores da desigualdade que não são levados em conta?

Concentrar a atenção do problema na renda ou na escola, como faz a esmagadora maioria dos estudiosos, equivale a manter e aprofundar uma percepção superficial de um fenômeno importante, com uma chancela supostamente científica. Isso acontece na dimensão do debate público de gente educada. A invisibilidade dos fatores que determinam e explicam por que as pessoas possuem renda tão discrepante, em sociedades como a brasileira, e por que alguns têm sucesso escolar e outros não, tudo isso é mantido à sombra das abordagens unilaterais. Significa, nada mais nada menos, que “mutilar” e esconder o principal, já que apenas tentamos explicar a desigualdade pelos seus efeitos mais visíveis.

Temos muitos pobres porque somos um país injusto ou somos um país injusto porque temos muitos pobres?

Certamente somos pobres porque somos injustos. O processo de modernização no Brasil se deu de modo apenas econômico. É um contra-senso falar da necessidade de um “choque de capitalismo” neste País, como fazem políticos e especialmente a imprensa de mentalidade liberal. O Brasil aceitou, desde o início, toda a concepção de mundo do capitalismo liberal e econômico. Isso também explica por que crescemos economicamente de 1930 até 1980, com taxas semelhantes às da China ou Índia hoje em dia. Fomos, naqueles 50 anos, campeões em desenvolvimento econômico em todo o planeta, o que não é pouco. Passamos de um dos países mais pobres do globo para o oitavo lugar economicamente.

E por que involuímos para essa tremenda desigualdade?

Porque nosso problema é outro. O que nunca tivemos, nem desenvolvemos, foi uma mentalidade pública de “responsabilidade social”, como nos países da social-democracia européia. O que Alemanha, Suécia ou Holanda fizeram foi precisamente “limitar” e “regular” o mercado, que é uma instituição ambígua: o mercado competitivo moderno produz riquezas como nenhuma outra forma de produção econômica. Mas produz também miséria, sofrimento e desespero para aqueles que não logram se adaptar aos seus imperativos. O que fez a social-democracia européia? Retirou do mercado a regulação de esferas como educação, saúde e previdência, em favor de uma regulação por valores compartilhados socialmente e estranhos ao próprio mercado.

Como se explica a baixa responsabilidade social no Brasil?

Certamente, a base de religiosidade ética daqueles países avançados ajudou-os na passagem de uma ética universalista de caráter religioso para uma ética comunitária secular, também de caráter universalista. Nós, em compensação, tivemos uma ética “mágica” do catolicismo familiar, tão pragmática, instrumental e economicista quanto a própria discussão pública dessas questões. Mas uma sociedade pode sempre mudar, apesar de suas heranças históricas. O problema é que, na relativa pobreza do nosso debate público, sequer chegamos a identificar o que mantém o nosso atraso social, sempre confundido com atraso econômico. O fato do Brasil ter sido o campeão de crescimento, sem ter alterado radicalmente seu padrão de desigualdade, deveria ser uma prova empírica irrefutável da necessidade de considerar outras variáveis.

Já não terá mudado a percepção social da pobreza? Ou ainda somos repetidores do Brasil dividido em casa grande e senzala?

Não existe pergunta mais importante do que esta para compreender o Brasil moderno. Creio que a nossa percepção social não mudou radicalmente desde a escravidão. Porque as pessoas só pensam em crescimento econômico. Com esta crítica não estou aqui dizendo que este dado seja pouco importante. Mas não pode ser o único. As razões disso são em parte históricas, no que toca à peculiaridade brasileira, e em parte produto do racionalismo moderno, que tende apenas a perceber o que é “visível” e “quantificável”.

É correto dizer que o Brasil ainda não conhece o Brasil?

O “Brasil moderno”, de uma classe média que é tão européia, no essencial, quanto a sociedade alemã ou italiana de classe média, não sabe nada sobre o “Brasil atrasado”, Brasil da “ralé estrutural” e das favelas. Na arte e no cinema encontramos belas obras como o recente Amarelo Manga, filme do diretor Cláudio Assis, ou Justiça, filme de Maria Augusta Ramos. Pois esse é o Brasil esquecido, das pessoas que só têm “estômago e sexo”, como diz Assis em seu filme. Pessoas que só possuem corpo e o vendem pelo melhor preço, que por sinal é sempre baixo. Falo de prostituição e trabalho doméstico para as mulheres, de trabalho muscular e “tração animal”, para os homens. Essas pessoas são excluídas daquelas dimensões que constróem a sociedade moderna, tais como mercado, Estado e esfera pública. Porque não “incorporam” conhecimento.

Há ou não democratização do conhecimento?

Conhecimento é recurso social escasso, que o capitalismo moderno “democratiza” em alguma medida. Valeria à pena frisar que, em todas as sociedades tradicionais, o acesso ao conhecimento sempre foi guardado a sete chaves. E hoje, ainda, a propriedade econômica continua a ser transmitida por herança, como em qualquer sociedade tradicional. Nós, todos nós historicamente construímos uma sociedade onde uma parcela significativa dela só possui o próprio corpo e está excluída de qualquer acesso ao mundo moderno e suas benesses. A compreensão artística do problema é muito bonita, como nos filmes citados, mas insuficiente.Por quê?Porque a arte, embora nos toque na alma, tem caráter metafórico. A compreensão de um processo social tão complexo tem que identificar os “por quês” e as “razões”.

O senhor diz que análises economicistas não explicam a complexa trama da desigualdade. E que a visão artística, apesar de bonita, é insuficiente. Como desenvolver uma compreensão mais ampla?

No caminho que venho trilhando nos últimos dez anos, dedicados exclusivamente ao tema da desigualdade entre nós, venho alternando pesquisas empíricas e teóricas sobre a sociologia contemporânea e brasileira. Fui muito influenciado pelos trabalhos de Maria Sylvia de Carvalho Franco (especialmente no livro Homens Livres na Ordem Escravocrata) e pelo trabalho de Florestan Fernandes (em Integração do Negro na Sociedade de Classes e A Revolução Burguesa). Nesses autores existe a preocupação de compreender os mecanismos “invisíveis” dos quais falei anteriormente, que se manifestam depois em resultados econômicos “visíveis”. Meu trabalho tem sido recuperar essa dimensão esquecida nas últimas décadas, pela dominância das análises economicistas. Procurei acrescentar, ao trabalho dos autores citados, desenvolvimentos da teoria sociológica de vanguarda que não existiam à época em que Maria Sylvia ou Florestan produziram aquelas obras. Além de Pierre Bourdieu, procurei utilizar criticamente autores como Charles Taylor e Axel Honneth, os dois maiores nomes internacionais da filosofia e da sociologia do reconhecimento. Suas teorias procuram mostrar como o móvel do comportamento humano é também moral, cultural e emocional.

Dá para colocar na balança o lado moral da desigualdade brasileira?

Novamente a questão é correta. Permite discutir o ponto principal. O Brasil é um país moderno, apesar de desigual. Sociedades modernas possuem um núcleo próprio de moralidade. O “valor diferencial das pessoas” no mundo moderno depende de duas fontes de valor moral que podemos chamar, como faz o canadense Charles Taylor, de “dignidade” e “autenticidade”. A dignidade das pessoas no mundo moderno tem a ver com pressupostos psicossociais do trabalho produtivo em condições capitalistas, ou seja, com a presença de disciplina, auto-controle, pensamento prospectivo, etc. Foi a generalização desses pressupostos que tornaram países como Alemanha, Suécia ou França mais igualitários e avançados em termos de aprendizado moral e político, e não em termos de simples desenvolvimento econômico. Mas continua a existir uma esfera de desigualdade importante nas sociedades avançadas. Falo daquela forma de distinção que, por exemplo, separa o indivíduo de classe média de “bom gosto” do trabalhador com gosto supostamente “rude”. Esse tipo de racismo de classe existe em todo lugar.

E como se manifesta aqui ?

O que separa uma sociedade como a brasileira de uma sociedade como a alemã, para falar de um lugar estrangeiro onde morei durante sete anos, é a produção, no Brasil, do que chamo provocativamente em meus livros de uma “ralé estrutural”. Ou seja, de toda uma classe de pessoas, algo como um 1/3 da população brasileira, excluída de qualquer acesso à possibilidade de trabalho produtivo nas condições de competitividade do mercado capitalista. Isso também implica a ausência dessas pessoas no Estado e na esfera pública, pela impossibilidade de ter voz própria e percepção dos seus efetivos interesses de longo prazo. Falo dessa classe de “despreparados”, gente que se reproduz entre nós há séculos, sem que jamais se tenha feito o esforço cívico e republicano de sua redenção. Essas pessoas são o “lixo” numa sociedade que jamais se importou com elas e jamais lhes conferiu requisitos objetivos para que consigam o respeito dos outros e a auto-estima de si mesmos.

Afinal, a quem responsabilizar pela manutenção desse Brasil de excluídos, que existe desde sempre?

Não se trata de culpar governos. O fato é que nunca houve um consenso social no sentido de transformar tal questão em tema público de relevância. A “culpa”, se esta é a palavra certa, deve ser de todos nós e do tipo de sociedade excludente que cotidianamente contribuímos para manter.

O Bolsa Família é apontado pelo PNUD como fator de melhoria social. Pode ter contribuído para baixar em 10% a 15% os níveis de desigualdade. E poderá ter tirado pelo menos 5 milhões de brasileiros da condição de extrema pobreza. É avanço efetivo ou só assistencialismo?

Todos os programas sociais já feitos no Brasil, e os que ainda se fazem, como o Bolsa Família, são assistencialistas porque obedecem à lógica do curto prazo. Baseiam-se, em última instância, numa visão de mundo liberal, que imagina a sociedade feita de indivíduos com as mesmas disposições de comportamento, disposições fungíveis e intercambiáveis. Vem daí a abordagem da pobreza como se fosse um fato fortuito e “casual”. Bastaria então uma pequena ajuda econômica, ajuda meramente tópica, para fazer as pessoas caminharem de novo com os próprios pés. Assim se percebe a desigualdade no Brasil. Assim se cria a ilusão de uma sociedade sem classes sociais, na medida em que todos pertencemos ao mesmo tipo humano. E assim nos tornamos efetivamente incapazes de pensar ações de médio e longo prazo para incluir, de fato, classes sociais que se reproduzem há séculos como excluídas. Isso não é culpa de governos. Muito menos do presidente Lula, que tem manifestado sensibilidade maior do que, inclusive, os setores mais educados de nossa sociedade. Jogar a culpa em pessoas e governos é a melhor maneira de manter a situação como está. É a versão pública de um narcisismo primitivo que nos faz ver que o problema está sempre no outro, e não em nós mesmos.

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